A Vida
Foi-se-me pouco a pouco amortecendo a luz que nesta vida me guiava, olhos fitos na qual até contava ir os degraus do túmulo descendo.
Em se ela anuviando, em a não vendo, já se me a luz de tudo anuviava; despontava ela apenas, despontava logo em minha alma a luz que ia perdendo.
Alma gémea da minha, e ingénua e pura como os anjos do céu (se o não sonharam...) quis mostrar-me que o bem bem pouco dura!
Não sei se me voou, se ma levaram; nem saiba eu nunca a minha desventura contar aos que inda em vida não choraram ...
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Adoração
Vi o teu rosto lindo, Esse rosto sem par; Contemplei-o de longe mudo e quedo, Como quem volta de áspero degredo E vê ao ar subindo O fumo do seu lar! Vi esse olhar tocante, De um fluido sem igual; Suave como lâmpada sagrada, Bem-vindo como a luz da madrugada Que rompe ao navegante Depois do temporal! Vi esse corpo de ave, Que parece que vai Levado como o Sol ou como a Lua Sem encontrar beleza igual à sua; Majestoso e suave, Que surpreende e atrai! Atrai e não me atrevo A contemplá-lo bem; Porque espalha o teu rosto uma luz santa, Uma luz que me prende e que me encanta Naquele santo enlevo De um filho em sua mãe! Tremo apenas pressinto A tua aparição, E se me aproximasse mais, bastava Pôr os olhos nos teus, ajoelhava! Não é amor que eu sinto, É uma adoração! Que as asas providentes De anjo tutelar Te abriguem sempre à sua sombra pura! A mim basta-me só esta ventura De ver que me consentes Olhar de longe... olhar!
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A vida é o dia de hoje
A vida é o dia de hoje, A vida é ai que mal soa, A vida é sombra que foge, A vida é nuvem que voa;
A vida é sonho tão leve Que se desfaz como a neve E como o fumo se esvai: A vida dura um momento, Mais leve que o pensamento, A vida leva-a o vento, A vida é folha que cai!
A vida é flor na corrente, A vida é sopro suave, A vida é estrela cadente, Voa mais leve que a ave:
Nuvem que o vento nos ares, Onda que o vento nos mares, Uma após outra lançou, A vida - pena caída Da asa da ave ferida De vale em vale impelida A vida o vento levou!
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Dia de Anos
Com que então caiu na asneira De fazer na quinta-feira Vinte e seis anos! Que tolo! Ainda se os desfizesse... Mas fazê-los não parece De quem tem muito miolo!
Não sei quem foi que me disse Que fez a mesma tolice Aqui o ano passado... Agora o que vem, aposto, Como lhe tomou o gosto, Que faz o mesmo? Coitado!
Não faça tal: porque os anos Que nos trazem? Desenganos Que fazem a gente velho: Faça outra coisa: que em suma Não fazer coisa nenhuma, Também lhe não aconselho.
Mas anos, não caia nessa! Olhe que a gente começa Às vezes por brincadeira, Mas depois se se habitua, Já não tem vontade sua, E fá-los queira ou não queira!
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A Cigarra e a Formiga
Como a cigarra o seu gosto É levar a temporada De Junho, Julho e Agosto Numa cantiga pegada, De Inverno também se come, E então rapa frio e fome! Um Inverno a infeliz Chega-se à formiga e diz: - Venho pedir-lhe o favor De me emprestar mantimento, Matar-me a necessidade; Que em chegando a novidade, Até faço um juramento, Pago-lhe seja o que for. Mas pergunta-lhe a formiga: "Pois que fez durante o Estio?" - Eu, cantar ao desafio. "Ah cantar? Pois, minha amiga, Quem leva o Estio a cantar, Leva o Inverno a dançar!"
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A Enjeitadinha
— De que choras tu, anjinho? "Tenho fome e tenho frio!" — E só por este caminho Como a ave que caiu Ainda implume do ninho!... A tua mãe já não vive?
"Nunca a vi em minha vida; Andei sempre assim perdida, E mãe por certo não tive!" — És mais feliz do que eu, Que tive mãe e... morreu!
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Avarento
Puxando um avarento de um pataco para pagar a tampa de um buraco que tinha já nas abas do casaco, levanta os olhos, vê o céu opaco, revira-os fulo e dá com um macaco defronte, numa loja de tabaco, que lhe fazia muito mal ao caco! Diz ele então na força da paixão: - Há casaco melhor que aquela pele? Trocava o meu casaco por aquele... e até a mim... por ele. Tinha razão quanto a mim. Quem não tem coração, quem não tem alma de satisfazer as niquices da civilização homem não deve ser: seja saguim, que escusa tanga, escusa langotim. Vá para os matos; já não sofre tratos a calçar as botas, a comprar sapatos. Viva nas tocas como os nossos ratos e coma cocos, que são mais baratos!
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