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Bocage

Bocage


Manuel Maria de Barbosa l´Hedois Du Bocage (Setúbal, 1765 – Lisboa, 1805), poeta português e, possivelmente, o maior representante do arcadismo lusitano. Embora ícone deste movimento literário, é uma figura inserida num período de transição do estilo clássico para o estilo romântico que terá forte presença na literatura portuguesa do século XIX.


Nascido em Setúbal a 15 de Setembro de 1765, falecido em Lisboa a 21 de Dezembro de 1805. Era filho do bacharel José Luís Soares de Barbosa, que foi juiz de fora, ouvidor, e depois advogado, e de D. Mariana Joaquina Xavier l’Hedois Lustoff du Bocage, cujo pai era francês.

Sua mãe era segunda sobrinha da célebre poetisa francesa, madame Marie Anne Le Page du Bocage, tradutora do Paraíso de Milton, imitadora da Morte de Abel, de Gessner, e autora da tragédia As Amazonas e do poema épico em dez cantos A Columbiada, que lhe mereceu a coroa de louros de Voltaire e o primeiro prémio da academia de Rouen.

Apesar das inúmeras biografias publicadas após a sua morte, uma boa parte da sua vida permanece um mistério. Não sabemos que estudos fez, embora se deduza da sua obra que estudou os clássicos e as mitologias grega e latina, que estudou francês e também latim. A identificação das mulheres que amou é muito duvidosa e discutível.

A sua infância foi infeliz. O seu pai foi preso por dívidas ao Estado quando ele tinha 6 anos de idade e permaneceu na cadeia seis anos. A sua mãe faleceu quando ele tinha dez anos. Possivelmente ferido por um amor não correspondido, assentou praça como voluntário em 22 de Setembro de 1781 e permaneceu no Exército até 15 de Setembro de 1783. Nessa data, foi admitido na Escola da Marinha Real, onde fez estudos regulares para guarda-marinha. No final do curso desertou, mas, ainda assim, aparece nomeado guarda-marinha por D. Maria I. Nessa altura, já a sua fama de poeta e versejador corria por Lisboa.

Em 14 de Abril de 1786, embarcou como oficial de marinha para a Índia, na nau “Nossa Senhora da Vida, Santo António e Madalena”, que fez escala no Rio de Janeiro (finais de Junho) e na Ilha de Moçambique (início de Setembro) e chegou à Índia em 28 de Outubro de 1786. Em Pangim, frequentou de novo estudos regulares de oficial de marinha. Foi depois colocado em Damão, mas desertou, embarcando para Macau. Estranhamente, não foi punido e deverá ter regressado a Lisboa em meados de 1790.

A década seguinte é a da sua maior produção literária e também o período de maior boémia e vida de aventuras. Ainda em 1790 foi convidado e aderiu à Academia das Belas Letras ou Nova Arcádia. Mas passado pouco tempo, escrevia já ferozes sátiras contra os confrades. Em 1791, foi publicada a 1.ª edição das “Rimas”. Dominava então Lisboa o Intendente da Polícia Pina Manique que decidiu pôr ordem na cidade, tendo em 7 de Agosto de 1797, dado ordem de prisão a Bocage por ser “desordenado nos costumes”. Ficou preso no Limoeiro até 14 de Novembro de 1797, tendo depois dado entrada no calabouço da Inquisição, no Rossio. Aí ficou até 17 de Fevereiro de 1798, tendo ido depois para o Real Hospício das Necessidades, dirigido pelos Padres Oratorianos de São Filipe Néry, depois de uma breve passagem pelo Convento dos Beneditinos. Durante este longo período de detenção, Bocage mudou o seu comportamento e começou a trabalhar seriamente como redactor e tradutor. Só saiu em liberdade no último dia de 1798.

De 1799 a 1801 trabalhou sobretudo com Frei José Mariano da Conceição Veloso, um frade brasileiro, politicamente bem situado e nas boas graças de Pina Manique, que lhe deu muitos trabalhos para traduzir. A partir de 1801 até à morte viveu em casa por ele arrendada no Bairro Alto.

 

 

Camões, comparando com os dele os seus próprios infortúnios

 Camões, grande Camões, quão semelhante                     
Acho teu fado ao meu quando os cotejo!
Igual causa nos fez perdendo o Tejo
Arrostar co sacrílego gigante:

Como tu, junto ao Ganges sussurrante
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante:

Lubíbrio, como tu, da sorte dura,
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura:

Modelo meu tu és... Mas, ó tristeza!...
Se te imito nos transes da ventura,
Não te imito nos dons da natureza.

A lamentável catástrofe de D. Inês de Castro

Da triste, bela Inês, inda os clamores
Andas, Eco chorosa, repetindo;
Inda aos piedosos Céus andas pedindo                    
Justiça contra os ímpios matadores;

Ouvem-se inda na Fonte dos Amores
De quando em quando as náiades carpindo;
E o Mondego, no caso reflectindo,
Rompe irado a barreira, alaga as flores:

Inda altos hinos o universo entoa
A Pedro, que da morte formosura
Convosco, Amores, ao sepulcro voa:

Milagre da beleza e da ternura!
Abre, desce, olha, geme, abraça e c'roa
A malfadada Inês na sepultura.

 

 

O Ciúme
Bocage
              
Entre as tartáreas forjas, sempre acesas,                            
Jaz aos pés do tremendo, estígio nume,
O carrancudo, o rábido Ciúme,
Ensanguentadas as corruptas presas.

Traçando o plano de cruéis empresas,
Fervendo em ondas de sulfúreo lume,
Vibra das fauces o letal cardume
De hórridos males, de hórridas tristezas.

Pelas terríveis Fúrias instigado,
Lá sai do Inferno, e para mim se avança
O negro monstro, de áspides toucado.

Olhos em brasa de revés me lança;
Oh dor! Oh raiva! Oh morte!... Ei-lo a meu lado
Ferrando as garras na vipérea trança.
 

 

Desejo Amante

Da triste, bela Inês, inda os clamores
Andas, Eco chorosa, repetindo;
Inda aos piedosos Céus andas pedindo                    
Justiça contra os ímpios matadores;

Ouvem-se inda na Fonte dos Amores
De quando em quando as náiades carpindo;
E o Mondego, no caso reflectindo,
Rompe irado a barreira, alaga as flores:

Inda altos hinos o universo entoa
A Pedro, que da morte formosura
Convosco, Amores, ao sepulcro voa:

Milagre da beleza e da ternura!
Abre, desce, olha, geme, abraça e c'roa
A malfadada Inês na sepultura.


 

Em louvor do grande Camões

Sobre os contrários o terror e a morte                                                         
Dardeje embora Aquiles denodado,
Ou no rápido carro ensanguentado
Leve arrastos sem vida o Teuco forte:

Embora o bravo Macedónio corte
Coa fulminante espada o nó fadado,
Que eu de mais nobre estímulo tocado,
Nem lhe amo a glória, nem lhe invejo a sorte:

Invejo-te, Camões, o nome honroso;
Da mente criadora o sacro lume,
Que exprime as fúrias de Lieu raivoso:

Os ais de Inês, de Vénus o queixume,
As pragas do gigante proceloso,
O céu de Amor, o inferno do Ciúme.


 

Já Bocage não sou!... À cova escura
Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...                      
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa!... Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse, pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui... A santidade
Manchei!... Oh! Se  me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

MEU SER EVAPOREI NA LIDA INSANA

                                                                          

Meu ser evaporei na lida insana

Do tropel de paixões que me arrastava;

Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava

Em mim quase imortal a essência humana.

 

De que inúmeros sóis a mente ufana

A existência falaz me não doirava!

Mas eis sucumbe a natureza escrava

Ao mal que a vida em origem dana.

 

Prazere, sócios meus, e meus tiranos!

Esta alma, que sedenta em si não coube,

No abismo vos sumiu dos desenganos.

 

Deus, ó Deus! Quando a morte a luz me roube,

Ganhe um momento o que perderam anos,

Saiba morrer o que viver não soube.

Já o Inverno, expremendo as cãs nevosas
Já o Inverno, expremendo as cãs nevosas,
Geme, de horrendas nuvens carregado;
Luz o aéreo fuzil, e o mar inchado
Investe ao pólo em serras escumosas;

Ó benignas manhãs!, tardes saudosas,
Em que folga o pastor, medrando o gado,
Em que brincam no ervoso e fértil prado
Ninfas e Amores, Zéfiros e Rosas!

Voltai, retrocedei, formosos dias:
Ou antes vem, vem tu, doce beleza
Que noutros campos mil prazeres crias;

E ao ver-te sentirá minha alma acesa
Os perfumes, o encanto, as alegrias,
Da estação que remoça a natureza.



 

SONETO  IX

                                                                                    

Arreitada donzela em fofo leito

Deixando erguer a virginal camisa,

Sobre as roliças coxas se divisa

Entre sombras sutis pachocho estreito:

 

De louro pêlo um círculo imperfeito

Os papudos beicinhos lhe matiza;

E a branda crica, nacarada e lisa,

Em pingos verte alvo licor desfeito:

 

A voraz porra as guelras encrespando

Arruma a focinheira e entre gemidos

A moça treme, os olhos requebrando:

 

Como é ainda boçal perde os sentidos;

Porém vai com tal ânsia trabalhando,

Que os homens é que vêm a ser fodidos.


Esperança Amorosa

Grato silêncio, trémulo arvoredo,
Sombra propícia aos crimes e aos amores,
Hoje serei feliz! --- Longe, temores,
Longe, fantasmas, ilusões do medo.

Sabei, amigos Zéfiros, que cedo
Entre os braços de Nise, entre estas flores,
Furtivas glórias, tácitos favores,
Hei-de enfim possuir: porém segredo!

Nas asas frouxos ais, brandos queixumes
Não leveis, não façais isto patente,
Quem nem quero que o saiba o pai dos numes:

Cale-se o caso a Jove omnipotente,
Porque, se ele o souber, terá ciúmes,
Vibrará contra mim seu raio ardente.


 

DOS TÓRRIDOS SERTÕES, PEJADOS D’OURO                                                                              

 

Dos tórridos sertões, pejados d’ouro,

 Saiu um sabichão d’escassa fama,

 Que os livros preza, os cartapácios ama,

 Que das línguas repartem o tesouro:

  

Arranha o persiano, arranha o mouro,

 Sabe que Deus em turco Alá se chama;

 Que no grego alfabeto o G é gama,

 Que taurus em latim quer dizer touro:

  

Par papaguear saiu do mato:

 Abocanha talentos, que não goza;

 É mono, e prega unhadas como gato:

  É nada em verso, quase nada em prosa:

 Não conheces, leitor, neste retrato

 o guapo charlatão Tomé Barbosa?

 

Invocação à Noite

Ó deusa, que proteges dos amantes
O destro furto, o crime deleitoso,
Abafa com teu manto pavoroso
Os importantes astros vigilantes:

Quero adoçar meus lábios anelantes
No seio de Ritália melindroso;
Estorva que os maus olhos do invejoso
Turbem d'amor os sôfregos instantes:

Tétis formosa, tal encanto inspire
Ao namorado Sol teu níveo rosto,
Que nunca de teus braços se retire!

Tarda ao menos o carro à Noite oposto,
Até que eu desfaleça, até que expire
Nas ternas ânsias, no inefável gosto.



 

Retrato próprio

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste da facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno.

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno:

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades:

Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.